Um chamado a ser humano
Ana Paula de Melo Gomes, assessora do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, lotada no 5º JECC da Capital, membro do Clube do Livro: Direito e Literatura
É Isto um Homem, de Primo Levi, Editora Rocco - De seu semblante sofrido, à luz de seu olhar cansado, mas preservado em toda sua sensatez, Primo Levi nos contempla com a obra É isto um homem, sendo esta, uma literatura de testemunho, construída por meio de dolorosas lembranças enquanto ele foi prisioneiro em Auschwitz.
A narrativa se inicia com o capítulo A Viagem, quando retiram dele a pátria, a autonomia da vontade, a história e a vida. Em dezembro de 1943, os nazistas lhe subtraem o solo italiano e transportam-no em condições subumanas, o que ele, em diversas passagens, intitula como o inferno. A riqueza de detalhes, fruto da autenticidade dos fatos, gera a transposição do leitor àquele vagão frio, úmido, quase sem ar e diante de tantas pessoas empilhadas, como se fossem uma carga descartável.
Na leitura, viajamos no tempo dos horrores nazistas, conseguimos até formular, como numa nuvem de pensamentos, os dias descritos pelo autor, mas jamais poderemos dimensionar os danos sofridos pelos prisioneiros, jamais a vida compensará qualquer lesão aos seus direitos de personalidade. Roubaram-lhes a dignidade, roubaram-lhes tudo, a ponto de que olhar para o outro era como um espelho em que se refletiam somente os ossos e nada mais. A dor expressada pelo dom da sensibilidade do autor é transmitida ao leitor e percorre o nosso íntimo, como neste trecho do livro, que soa como um desabafo:
Num ápice, com uma intuição quase profética, a realidade revelou-se-nos: chegamos ao fundo. Mais para baixo do que isto, não se pode ir: não há nem se pode imaginar condição humana mais miserável. Já nada nos pertence: tiraram-nos a roupa, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão e, se nos escutassem, não nos perceberiam. Tirar-nos-ão razão também o nome: se quisermos conservá-lo, teremos de encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer com que, por trás do nome, algo de nós, de nós tal como éramos, ainda sobreviva.
O escritor, no trecho acima, retrata as condições do maior cenário genocida do século XX: o holocausto. Ou, em hebraico, shoah, que significa fogo. Ainda a exemplo dos casos narrados, ele nos diz que na enfermaria, chamada de ka-be, existia apenas uma saída: a de curar-se em até dois meses. Esse era o tempo imposto pelo homem para que um doente se recuperasse da enfermidade dele. Nas mãos dos nazistas, estava sempre a escolha de quem viveria ou morreria e até de quem se curaria. Foram tantas situações inacreditáveis que levaram Primo Levi a viver todos os seus anos seguintes perguntando-se o porquê de tudo isso.
Ainda no texto, ele descreve a dor que o espírito suspirava no frio que sentia, na fome, na sede, no desespero de almas que ali brigavam por um pedaço de pão; que, a qualquer descuido, tinham até a tão precária vestimenta roubada por outra vítima tão necessitada quanto.
São relatos que o autor faz por meio de uma visão alcançada, na minha perspectiva com a leitura, da amizade com Steinlauf, a quem ele se recorda, no livro, como um suspiro de salvação. Com ele, Primo Levi aprendeu que não era apenas adiar a saída pela chaminé. Inclusive, por um bom tempo, não se sabia o significado dessa expressão, da realidade vivenciada por quem desceu pelo outro lado do vagão, ou seja, quem não seria útil aos trabalhos impostos ali no campo de concentração, trabalhos esses que ironicamente lia-se gravado na entrada do campo a frase: Arbeit Macht Frei (O trabalho liberta).
O livro é carregado de emoções, e o encontro com Steinlauf, ao conversarem sobre as condições do banho, faz-nos refletir sobre a importância de buscar a esperança quando tudo parece impossível. Por um momento, naquela prisão, desaparecera para o autor o instinto de limpeza, mas esse amigo lhe mostrou que era preciso sobreviver e resistir, que se era para lavar o rosto com água suja, que se lavasse; que se eles tinham que engraxar os sapatos, que não fosse por obrigação, mas por dignidade e propriedade. Que era necessário sobreviver para dar ao mundo o testemunho de tudo aquilo.
O diálogo entre os personagens, diga-se de passagem, personagens da vida real, é atemporal, servindo a nós, leitores, como prato principal, se pudéssemos nos servir de um cardápio de ensinamentos. Observa-se, também, que a segregação, segundo a norma vigente na Alemanha à época, foi de raça e crença. Puniram Primo Levi por ser judeu, em total desrespeito ao direito de escolha dele pela religião. Ele demonstra que após a remoção das famílias de seus lares e o envio delas aos campos, os quais os alemães chamavam de concentração, mas eram, na verdade, de extermínio, ainda havia a seleção dos que podiam trabalhar e dos que não podiam, uma triagem que separou muitos pais dos filhos e esposos de suas esposas. Foram milhares de mortos pelas câmaras de gás e pouquíssimos foram agrupados para o trabalho.
O trabalho era duro e com o horário a contar pela luz solar. Enquanto havia sol, trabalhavam. Num capítulo, até diz que ele era feliz em dia de sol. Mas o labor não parava nem no inverno. Como conseguiam pensar e manter suas cabeças firmes naquele período? Impossível de imaginar. Pedro Levi se considerou sortudo porque era químico e em Auschwitz funcionava uma fábrica química, ele seria útil e, enquanto fosse útil, viveria. Uma sorte que ele considerava, porque alguns preferiram não lutar e entregaram-se diante de tanta dor. Dói tanta imposição sobre a vida do ser humano. Como ele nos diz, chegar a um local após cinco dias de viagem em pé num vagão cheio de pessoas assustadas, gritando e com muita sede, e não entender sequer a língua que estavam falando, era algo muito degradante.
O que nos impressiona é o modo como ele aprendeu a conviver e sobreviver, como ele conseguiu calcular exatamente em qual local da fila deveria pegar a panela de sopa no meio, em que não fosse somente o caldo. Tudo era milimetricamente calculado e pensar foi a sua maior arma na luta pela sobrevivência.
Dignidade humana, segundo o jurista Ingo Wolfgang Sarlet, consiste na qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, que o protege contra todo tratamento degradante e discriminação odiosa, bem como assegura condições materiais mínimas de sobrevivência.¹ Nos campos de extermínio não havia esse mínimo existencial. Como ele sobreviveu é uma história de muita resistência e que fica, aqui, nas reticências, para não traçarmos nesta breve resenha nenhum spoiler.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, foi proclamada a declaração dos direitos humanos. Fazendo uma vertente com o Brasil, a CF de 88 garantiu os direitos fundamentais em seu art. 5.º e outros sobre direitos sociais que se encontram esparsos, que têm nas entrelinhas a dor incalculável de todos os que estiveram sob o sol frio ou no duro inverno trabalhando de maneira indigna nos campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial.
Direitos esses que não podemos deixar que sejam usurpados, em nome de cada vítima de violência moral e física, em nome dos que hoje vivem e daqueles a quem guardamos suas expectativas de direito, em nome do Primo Levi.
Trata-se de um livro de suma importância histórica, uma literatura de memória de um dos maiores terrores da humanidade, que alerta para o perigo da teocracia/ governos autoritários. Revela-nos que por mais que o direito seja positivado, como as atrocidades aqui vistas (fundadas em normas legais na Alemanha à época), devem as leis se sujeitarem a princípios que assegurem à dignidade humana. Como disse Primo Levi: Então, pela primeira vez nos apercebemos de que a nossa língua carece de palavras para exprimir esta ofensa, a destruição de um homem.
É isto um homem? Fica a reflexão para as nossas vidas.
¹André de Carvalho Ramos, Curso de Direitos Humanos, p. 82, Saraiva Educação, 2021.