Antígona
Artigo de Ana Paula de Melo Gomes, servidora
do TJAL, sobre obra do dramaturgo grego Sófocles
Imagine-se no enredo de um livro sem a necessidade de retornar ao tempo de sua escrita. Essa experiência pode ser vivenciada por meio da obra Antígona¹, peça de Sófocles desenvolvida por volta de 442 a.C., leitura que faz com que nos deparemos com tamanha semelhança com os dias atuais e nos leva a uma reflexão sobre a efetividade dos direitos humanos, com ênfase, inclusive, em temas como o feminismo.
A peça compõe a trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo Colono e Antígona. Ela pode ser lida de forma independente sem qualquer prejuízo à compreensão da história.
Na obra, trava-se uma discussão entre o direito natural e o direito positivo, ao tratar da condenação de Antígona à morte por enterrar o corpo de seu irmão Polinice, enquanto o Rei ordenava que fossem a ele negadas as honras do sepultamento, como a seguir transcrito: (...) proibiu aos cidadãos que encerrem o corpo num túmulo, e sobre este derramem suas lágrimas. Quer que permaneça insepulto, sem homenagens fúnebres, e presa de aves carniceiras. (pág. 06)
Para entender os fatos acima, é importante mencionar que a história começou em Tebas, quando o Rei Édipo, ao descobrir que havia matado o seu pai e se casado com sua mãe, em ato de desespero, arrancou os seus olhos com as próprias mãos e, após ser expulso do reino, passou a vagar sem rumo até se fixar em Atenas.
Dessa união incestuosa foram gerados os filhos Antígona, Ismênia, Polinice e Etéocles. Com o trono vazio, diante do desejo de assumir o poder, Polinice e Etéocles disputaram o reino entre eles e, com a maldição instalada, um veio a subtrair a vida do outro. Sem um sucessor homem para Édipo, já que as mulheres não podiam exercer o Governo, o parente mais próximo para continuar a dinastia foi o irmão de sua mãe, Creonte, surgindo assim uma nova ordem.
Aos olhos de Creonte, enquanto Etéocles era um herói, merecedor de todas as honras, Polinice era um traidor da Pátria, e por isso não era digno de ser sepultado, devendo ser deixado ao relento, à mercê de aves e cães, o que contrariava as divindades da natureza e a honra das irmãs Antígona e Ismênia. A partir de então, com o protagonismo de Antígona, costurou-se um emaranhado de desgraças, uma sequência de sofrimento em toda família.
Antígona, tomada pelo sentimento de irmã, com todo amor que tinha, desafiou a lei imposta por seu tio Creonte, sujeitando-se à pena de morte, e decidiu dar a Polinice um sepultamento. Ato de fé, crença, e, sobretudo, de coragem.
O sepultamento de Polinice foi levado ao conhecimento de Creonte e Antígona foi denunciada como autora do crime, que o assumiu perante o Rei. Em defesa dela, Hémon, seu noivo e filho de Creonte, disse ao pai que não havia lugar algum que pertencesse a um único homem, e somente em um deserto teria o direito de governar sozinho. Essa, aliás, é a ideia originária da democracia. O argumento, todavia, não convenceu o Rei.
Como punição por honrar o irmão, Creonte ordenou o sepultamento de Antígona, ainda com vida, mas ela antecipou sua morte suicidando-se. Nesse mesmo tempo, Hémon, ao saber do destino de sua amada tirou sua própria vida, tragédia que levou sua mãe, Eurídice, a também se matar. A sucessão de acontecimentos fúnebres levou Creonte a repensar suas atitudes com remorso.
Pensando o Direito, ao tempo em que a obra contrapõe o jusnaturalismo ao positivismo, as crenças e as forças da natureza às leis impostas pelo homem, observamos também, nas entrelinhas, a representação do estado de exceção², quando Creonte impõe uma norma por ele próprio ditada simplesmente por subjugar o direito do próximo.
É salutar evidenciarmos para uma melhor compreensão dos fatos os ensinamentos do filósofo Giorgio Agamben, quando descreve a existência, mesmo num estado de democracia, da figura da Vida Nua.³ Fenômeno que ocorre quando simplesmente se exclui uma pessoa que se encontra às margens do que se prescreve como o correto. Nesse caso, a quem comete um crime, denominado bandido, teria uma penalidade que não vem a ser de forma a ressocializar, mas estritamente de execução deste condenado.
De forma extremamente desumana e cruel essa história avançou-se sobre o estigma de um Rei autoritário, que ditou segundo sua vontade o que deveria ser visto como justo e injusto.
Paralelo a essa ficção trazemos a lume um fato real ocorrido em nosso estado, que trata de uma situação em que um acusado em diversos crimes, mesmo ao falecer é alvo de comentários que ferem os sentimentos da família. Segue-se abaixo um trecho do livro Segurança Pública, Sistema Carcerário e Direitos Humanos que detalha esse acontecimento no artigo denominado 15 anos do caso Sandrinho, o terror de Maceió: uma análise sob a perspectiva da criminologia midiática.4
"Nesta esteira, uma das moradoras residente do bairro Tabuleiro dos Martins, que também tinha ido ao IML no dia do velório, declarou que estava muito feliz com ocorrido, pois, segundo ela, 'ele estava aterrorizando muita gente e matando muito pai de família. Eu queria agradecer pessoalmente a quem fez isto'.
Em contrapartida, a irmã de Alessandra Domingos, destacava a falta de respeito para com o cadáver do irmão, principalmente porque, para ela, o objetivo já tinha sido alcançado, qual seja, matar Sandrinho, alegando que os funcionários do IML bem que poderiam fechar essa porta. Ninguém precisa estar vendo o corpo do meu irmão. É um absurdo isto. Ele já foi morto. Pronto."
Com isso, a proposta aqui explanada em breve linhas é a de pontuar na Literatura temas relevantes para o Direito, a fim de suscitar questionamentos que propiciem uma reflexão para se colocar em prática princípios que nos levem a tão almejada paz social.
¹ (Sófocles. Antígone, tradução de J. B. de Melo e Souza, disponível em www.direitorio.fgv.com.br, acesso em 30.01 2021. "Antígona" em outras traduções.)
² Antígona, de Sófocles. 1 vídeo (29min03seg). Publicado pelo canal Método Estude. Disponível em:https://youtu.be/baGauFAzW3U. Acesso em: 31 de jan. 2021.
³ Descreve Giorgio Agamben sobre o significado de Vida Nua: (...) vida nua, isto é, a vida matável e insacrificável do homo sacer, cuja função essencial na política moderna pretendemos reivindicar. (pág. 16). Agamben, Giorgio. Homo Sacer, o Poder Soberano e a Vida Nua. Tradução de Henrique Burigo, Editora UFMG, 2007, disponível em www.petdireito.ufsc.br, acesso em 31.01.2021.
4 Leitão Santos, Bruno Cavalcante et al. Segurança Pública, Sistema Carcerário e Direitos Humanos / Bruno Cavalcante Leitão Santos, Francisco de Assis de França Júnior, José Ailton da Silva Júnior (Coord.). Andradina: Meraki, 2020.