O sonho de um homem ridículo
Ana Paula de Melo Gomes é servidora do Tribunal de Justiça
de Alagoas e membro do Clube do Livro: Direito e Literatura
O sonho de um homem ridículo é um conto de autoria do russo Fiódor Dostoiévski, considerado pela crítica como um dos maiores escritores da literatura russa, indubitavelmente um dos grandes autores romancistas mundiais. A escrita de Dostoiévski tem como essência a interpretação do interior humano. Suas obras são extremamente peculiares pela forma de tecer textos e tantos contextos na construção da imagem do Eu.
A abordagem deste assunto a psiquê - denota toda uma escrita voltada para a psicologia humana ao propor ao leitor uma reflexão, quiçá um autojulgamento, porém muito sensível às condições humanas. No livro em apreço, publicado no ano de 1877, o autor trata do tema do existencialismo, através do dilema do bem e do mal, utilizando da solidão do personagem-narrador para desnudar a alma humana.
Pois bem. O ser humano é um universo curioso, instigante, e o autor, por meio deste monólogo, conduz o leitor a interpelar em dois mundos, o real e o do sonho. No primeiro, por entre as ruínas de um quarto onde o personagem deseja tirar sua própria vida, mas é interrompido por um encontro inesperado ocorrido momentos antes, o que o faz trair esse desejo tão antigo de partir deste mundo. O universo idílico se apresenta após o personagem adormecer em sua poltrona e o sonho, aparentemente mágico, manifestar-se por meio de divagações entre seres puros, abstraídos de todas as maldades e malícias humanas. O homem de Dostoiévski, contudo, corrompe aquele ambiente harmonioso, transmitindo, como por osmose, a carga negativa da mentira e, aos poucos, contaminando o próximo num ciclo vicioso. No sonho, ele se constrange por ver aquela intriga inesperada em meio ao que era plenitude e se põe a questionar seu propósito no mundo, com relances da autoconsciência.
Buscando retratar o inconsciente humano por meio deste sonho utópico, a felicidade do personagem percorreu como em diáspora dos desejos de uma vida perfeita, ora desfeitos pela sua consciência. Seria então o personagem um homem ridículo? Ridículo por ter a consciência de suas negatividades como homem? Ridículo por cobrar de si a perfeição incapaz de existir? Ridículo, porque questionava sua própria existência?
No início da história ele está absorvido pela ideia de que todos o consideram um ridículo e ele próprio tem essa consciência, como se pode ver na presente transcrição:
Todos riam de mim, o tempo todo. Mas ninguém sabia,
nem suspeitava que, se havia na Terra um homem mais sabedor do
fato de que sou ridículo, esse homem era eu, [...] (pág. 91)
Cumpre registrar que toda leitura resulta em compreensões de texto que podem ser diferentes e até divergentes, a depender muito de concepções pré-estabelecidas, das experiências de vida e de linguagem de cada leitor. Por isso que ao ler, talvez em outra circunstância social ou mesmo sentimental, o sujeito pode ter uma nova compreensão acerca do mesmo texto. Mas a interpretação, essa retrata o texto na essência do autor, por isso é importante conhecer um pouco sua trajetória, a época da sua escrita e o que se tem de atemporal para ser considerado um clássico da literatura mundial.
A percepção pessoal sobre a obra nos move para sentimentos de amor-próprio, empatia e de convívio com as crenças, como a fé naquilo que te torna homem, no seu propósito aqui na Terra.
A história se inicia com uma cena aparentemente (exteriorização das palavras em nossa imaginação) numa rua escura, fria, com o narrador-personagem apressado para ir ao seu refúgio (quarto) para subtrair sua vida, com a certeza de que desta vez tudo que arquitetava e tanto queria seria finalmente concretizado. Estava com a falsa impressão da coragem, e nisso surge, como que do nada, uma criança que puxa sua roupa pedindo ajuda. O homem, mesmo ouvindo o apelo de uma menina aflita pela necessidade de socorro para sua mãe, só se importava como tirar sua vida. Seu pensamento era voltado para o revólver sobre a mesa, aquele que por tantas vezes o esperou. Naquela noite ele não desistiria.
A menina, em seu desespero, agarra-se com esperança a outro transeunte, e o homem segue para seu destino final como que afugentado pelo mundo. Esses foram os instantes cruciais para que, na tentativa de atirar em si mesmo, viesse a adormecer e sonhar com um paralelo existencial. Após a surpresa por conviver com pessoas puras, devotadas ao bem, o homem passa por um momento de sobriedade quanto à consciência de ser um homem pequeno de atitude, incapaz de se sensibilizar com uma criança indefesa e de restaurar a sua paz.
Com efeito, uma carga de negatividade e culpa o afligiram. Neste particular do personagem, há de se compreender que os atos de bondade refletem no próprio sujeito ativo e ele teria sido incapaz de fazer algo de significativo para aquela menina, ocorrendo-lhe a sensação de egoísmo e o reconhecimento de que a todo tempo ele somente se importava com sua identidade de ridículo. A sua omissão, contudo, é que pode ser considerada ridícula. Ele ignorava as pessoas por saberem que o achavam ridículo e as pessoas o achavam ridículo por que se sentiam ignoradas. São semelhanças com o nosso dia a dia. Quantas vezes nos deparamos com situações que nós próprios criamos. A imaginação pode dar asas para um voo feliz, mas também pode nos tornar como ostras, fechadas, sem a percepção de sua grandiosidade por dentro.
Do paradoxo de seu sonho, a aflição foi o ápice para o homem descobrir sua libertação e não há como negar que a menina exerceu o papel da sua mais plena consciência, chamando-o para compreender melhor a vida. Muitas vezes é a compreensão do que se está vivenciando que nos torna fortes. É como lutar diariamente contra um câncer. Quanto mais conhecimento do seu diagnóstico, mais se saberá como reagir.
Essa conectividade percebida no sonho faz despertar para uma organização de suas ideias e perspectivas de vida, e com isso o autor faz perceber a importância de se ouvir, de se permitir ser ouvido, de buscar o autoconhecimento.
Este sonho, ao meu sentir, seria um psicólogo catalogando tudo que o personagem pudesse minuciar e jorrar para fora de si, e quando ele reconhece o significado de ajudar/cuidar, é como se ele pudesse ver as imagens da sua vida passando numa TV, estaria se conhecendo e buscando aprimorar as suas qualidades e, principalmente, reconhecer os seus erros e buscar consertar o que for possível.
Nota-se que é um texto muito subjetivo e, como nos sonhos, cheio de nuance, tecendo a alma humana como assunto. Na temática principal a resistência às frustrações da vida, numa roupagem que veste a cada um de nós. O que se evidencia pelo fato dele pensar em atirar na sua cabeça e no sonho pensar justamente em atirar no coração. Por quê? Qual o significado? O de que a dor estava na alma e que não queria tirar sua vida, mas sim a sua dor. Ou ?
O livro faz uma ponte com diversos outros títulos clássicos da literatura, mas, a mim, em especial com o da escritora inglesa Mary Shelley, com seu famoso livro Frankenstein. Um romance da escola gótica, com traços de horror e terror, porém no mesmo universo de autoconhecimento. Conexões estas que são muito valiosas numa leitura, o que demonstra a interação de obras para o firmamento de nossas convicções como pessoa, cidadão.
O que a criança pode representar ao leitor? Paradoxalmente, a vista de seus problemas e o despertar para as soluções. Como ensinamento, para não darmos às costas aos nossos problemas, mas enfrentá-los, e sempre seguir e prosseguir. Que nas diversidades encontramos a força.
Então nos perguntamos: quem o considerava ridículo seria o homem perfeito? Ou menos ridículo? Isso evidencia também os olhares críticos quando o próximo precisa de acolhimento social.
Quem sabe a criança seja a Pandemia COVID-19 pedindo socorro para o mundo. E quem seria perfeito para julgar? Assim firmamos na leitura a nossa fonte de conhecimento, provocações de discussões de temas diversos, e que nos serve de instrumento para combater a ignorância e os pré-julgamentos.
A leitura tem que ecoar do ser do leitor ou não se está completa a magnitude do conhecimento. É ler sobre fatos discriminatórios e não se calar. Se tudo que lemos não servir para que em nossos lares, em nossos trabalhos, enfim, em sociedade, tratemos todos com igualdade e respeito, terá sido em vão.
Conclui-se que o personagem-narrador tem a natureza sensível, representa bem situações de depressão vivenciadas por boa parte da população, e a menina é a esperança, que despertou o sentido de sua vida e, através do sonho, o fez refletir sobre tudo que estava vivendo, em que pese as dificuldades, não desistiu de viver.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem ridículo, tradução, prefácio e notas de Vadim Nikitin, São Paulo: Editora 34, 2017, 4.ª Edição.